nas lojas cintilam as belas coisas inúteis

foto: Daniela Machado – 11ºB (2022-23)

poema: “Dia de Natal”, de António Gedeão

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom. 
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, 
de falar e de ouvir com mavioso tom, 
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua
               miséria, 
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, 
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, 
como se de anjos fosse, 
numa toada doce, 
de violas e banjos,
 entoa gravemente um hino ao Criador.
 E mal se extinguem os clamores plangentes, 
a voz do locutor 
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu 
e as vozes crescem num fervor patético.
 (Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino 
              Jesus nasceu? 
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio 
              de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. 
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante. 
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas 
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais
                 distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, 
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
 cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, 
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de 
                cerâmica.


Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, 
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. 
E como se tudo aquilo nos dissesse diretamente respeito,
 como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos 
                 e favores.


A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
 Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
 E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento 
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado
                  comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena. 
Naquela véspera santa
 a sua comoção é tanta, tanta, tanta, 
que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho 
na noite incerta 
para ver se a aurora já está desperta. 
De manhãzinha, 
salta da cama,
 corre à cozinha em pijama.

Ah!!!!!!

Na branda macieza 
da matutina luz 
aguarda-o a surpresa 
do Menino Jesus.

Jesus,
 o doce Jesus,
 o mesmo que nasceu na manjedoura, 
veio pôr no sapatinho
 do Pedrinho
 uma metralhadora.


Que alegria 
reinou naquela casa em todo o santo dia!
 O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, 
fuzilava tudo com devastadoras rajadas 
e obrigava as criadas 
a caírem no chão como se fossem mortas: 
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está! 
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
 E até mesmo a mamã e o sisudo papá 
Fingiam
 que caíam 
crivados de balas.


Dia de Confraternização Universal,
 Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
 de Sonhos e Venturas. 
É dia de Natal.
 Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. 
Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão (1906-1997)

biobibliografia

Advertisement

Um pensamento sobre “nas lojas cintilam as belas coisas inúteis

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s