leitura: Letícia Pereira – 11º B (2022-23)
texto “Enquanto as palavras dormem”, de Rita Pais
Enquanto as palavras dormem
As palavras dormem. Aconchego-lhes os lençóis com desvelos de uma filha que as ama. Concedo-lhes o repouso que me têm vindo a pedir. São mãe compreensiva, cúmplice, confidente, e eu não as tenho poupado. Cumprem escrupulosamente o seu papel, e naturalmente mais sensatas que eu, protegem-me da vontade pouco saudável de frequentar a ironia, a mordacidade, o lamento, a autocomiseração, o facilitismo. Alertam-me, com o peso da razão, para a inutilidade e para o vício rapidamente adquiríveis destes lupanares, assim lhes chamam, em que entrar é uma tentação vulgarmente consensual e sair uma depuração complexa e solitária. Dou-lhes espaço para que se recomponham e olho-as, tranquilas no seu sono aparentemente doce, num abandono quase infantil. Aproveito este hiato para aperfeiçoar o mutismo das letras que dormem com elas. Divagar neste breve silêncio parece-me razoável. E esboço em traços largos a minha vontade deste agora urgente: estar num lugar difuso, coberta por uma luminosidade difusa, sentindo-me numa sensação difusa, silhueta difusa afastando-me rumo a uma experimentação difusa que esbata o quotidiano de arestas nítidas e agressivas em que o acordar das palavras me desnudará sob a luz crua de uma crua realidade.
Rita Pais, Aleatório, 12catorze, Edições Húmus