Vitória lê “Pores-do Sol”, de Raul Brandão

leitura: Vitória Alvelos – 10º ano (2021-22)

texto: “Pores-do Sol” (excerto de “Os Pescadores”) , de Raul Brandão

PORES- DO-SOL

            Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espetáculo extraordinário.

            Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados…

            Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que boia nas águas — e não quer morrer…

            Há na areia uns charcos onde se reflete o universo — o céu. A luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida.

            Em todo o dia o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados, água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim o sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária.

            Agora este, teatral, com largas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero — e a montanha roxa ao fundo prestes a desvanecer-se…

            Agora é prata, daqui a pouco é oiro, e quando o sol desaparecer de todo, ainda o horizonte fica por muito tempo iluminado. Oiro desvanecido e pó de água que ascende do mar. Um pouco de névoa, e dois jatos projetados no céu — verde e oiro, oiro e verde.

            Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo.

            Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa a meus pés, na espuma ensanguentada e chega ao sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu!

Raul Brandão  (1867-1930)

biobibliografia

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