Catarina lê “Vamos comprar um poeta”, de Afonso Cruz

leitura: Catarina Cardoso – 9º ano (2021-22)

texto: “Vamos comprar um poeta” (excerto), de Afonso Cruz

A ESCOLHA DE UM POETA

No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que felizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave à competitividade mais elementar.

 Na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento de barba.

Gostei de um que era ligeiramente marreco, uma escoliose com uma curvatura oblonga. Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cinco nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço. Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas.

O pai cumprimentou o vendedor com a cortesia destas ocasiões, há sempre uma grande solenidade, sacralidade, no ato de iniciar um possível negócio:

            Que os números lhe sejam favoráveis, disse ele.

            Prosperidade e crescimento, respondeu o vendedor.

O pai apontou para o poeta que fungava e não tinha patrocínio nas roupas e perguntou se aquele exemplar era subversivo, que é a característica mais temida nos poetas, é o equivalente à agressividade dos cães.

O senhor da loja respondeu:

            Está abaixo dos dois por cento. É sempre necessário serem um pouco subversivos ou a qualidade poética baixa demasiado e não gera lucro, ninguém compra, acabam preteridos a bailarinos ou hamsters.

            O que é que ele come?

            Qualquer coisa. Não são muito esquisitos, muitas vezes, três a quatro ocorrências por semana, chegam inclusivamente a esquecer-se de comer. Alguns abandonam a refeição a meio e levantam-se para deambular sem qualquer destino. Acontece muito ao pôr-do-sol ou ao luar ou com nevoeiro, é um comportamento típico. Não estranhem se os virem parados muito tempo como se estivessem a fazer contas. Não estão, são incapazes da soma mais elementar. Essas paragens são precisamente os momentos em que começam a fazer poemas nas suas cabeças. É um processo fascinante. Não se irão arrepender de comprar um poeta. E são muito mais asseados do que os artistas.

             Já tinha ouvido dizer.

            Mais alguma coisa que devamos saber sobre a manutenção de um destes exemplares?, inquiri eu.

            Para o entreter, compre-lhe cadernos com folhas brancas e canetas. Pode também adquirir alguns livros. Temos de várias marcas.

Afonso Cruz, Vamos comprar um poeta, Caminho

Afonso Cruz (1971- )

biobibliografia

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