leitura: Sílvia Cruz – 9º ano (2021-22)
texto: “A fronteira de asfalto”, de Luandino Vieira
A fronteira de asfalto
I
A menina de tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão.
– Combinado?
– Combinado – disse ele.
Riram os dois e continuaram a andar, pisando as flores violeta que caíam das árvores.
– Neve cor de violeta – disse ele.
– Mas tu nunca viste neve…
– Pois não, mas creio que cai assim…
– É branca, muito branca…
– Como tu!
E um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele.
– Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta-escura.
– Lembra-te da nossa combinação. Não mais…
– Sim, não mais falar da tua cor. Mas quem falou primeiro foste tu.
Ao chegarem à ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo caminho. A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.
– Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela. Olhou-a nos olhos. A menina baixou o olhar para a biqueira dos sapatos pretos e disse:
– Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas à volta do bairro? Sim, lembro-me…
A pergunta que o perseguia há meses saiu finalmente.
– E tu achas que está tudo como então? Como quando brincávamos à barra do lenço ou às escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no dizer de tua mãe? Achas…
E com as próprias palavras ia-se excitando. Os olhos brilhavam e o cérebro ficava vazio porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras.
– … que posso continuar a ser teu amigo…
– Ricardo!
– Que a minha presença em tua casa… no quintal de tua casa, poucas vezes dentro dela!, não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações…
Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel. O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente.
– Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e arcos de barril.
– Ricardo – disse a menina de tranças loiras -,tu disseste tudo isso para quê? Alguma vez te abandonei? Nem os comentários das minhas colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem a família que se tem voltado contra mim…
– Está bem. Desculpa. Mas sabes, isso fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura.
E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda não havia a fronteira de asfalto.
– Bons tempos – encontrou-se a dizer. – A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço à menina Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te chamavam? – gritou ele.
Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente fechadas e as flores violeta caindo-lhe na carapinha negra.
Depois, com passos decididos atravessou a rua, pisando com raiva a areia vermelha e sumiu-se no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão.
Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira que distraía a menina Nina. Depois a escola. Ambos na mesma escola, na mesma classe. A grande amizade a nascer.
Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em volta o espaço luminoso, sorridente, o ar feliz, o calor suave das paredes cor-de-rosa. E lá estava sobre a mesa de estudo «…Marina e Ricardo – amigos para sempre». Os pedaços da fotografia voaram e estenderam-se pelo chão. Atirou-se por cima da cama e ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se cobriu de névoa. Ricardo brincava com ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente ficou a pensar no mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a-pique onde viviam famílias numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro irmãos de Ricardo… porquê? Por que é que ela não podia continuara a ser amiga dele, como fora em criança? Por que é que agora era diferente?
– Marina, preciso falar-te.
A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha.
– Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse… teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora… um preto é um preto… As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei… Bem sabes que não é por mim!
– Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.
– Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele…
– Está bem, mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios arrogantemente apertados.
-Está bem, está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois, mergulhando a cara na colcha chorou.
II
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra de lenço. Os carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela. Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha uma cor crua em tudo. Luz na janela. Saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo dos seus pés. O Toni rosnou na casota. Avançou devagar até à varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado.
– Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.
– Ricardo!
– Ricardo? Que queres?
– Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa.
– Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. Amanhã na paragem do maximbombo. Vou mais cedo…
– Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouviu-se chorar no escuro. Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E subitamente o facho da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.
– Alto aí! O qu’é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal. As folhas secas cederam e ele escorregou. O Toni ladrou.
– Alto aí seu negro. Pára. Pára negro!
Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com violência abafada pelos sapatos de borracha. Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu pesadamente de encontro à aresta do passeio.
Luzes acenderam-se em todas as janelas. O Toni ladrava. Na noite ficou o grito loiro da menina de tranças.
Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé, o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo, estendido do lado de cá da fronteira, sobre as flores violeta das árvores do passeio.
Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra retorcida na sua direcção.
Luandino Vieira, in A cidade e a infância
Luandino Vieira (1935- )