Maria lê um excerto da “Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha

leitura: Maria Ferreira – 9º ano (2021-22)

texto: “Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha (excerto)

Carta a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento do Brasil

Na noite seguinte, ventou tanto de sueste com aguaceiros que as naus foram desviadas de rumo, especialmente a capitânia. E na sexta, pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou a Capitão levantar as âncoras e fazer a vela. E fomos ao longo da costa com os batéis e esquifes amarrados à popa, contra o norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso onde ficássemos, para tomar água e lenha, não por já nos minguar, mas para nos acertamos aqui.

E quando fizemos vela, estariam já na praia, sentados perto do rio, cerca sessenta ou setenta homens, que se foram juntando ali aos poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão que os navios pequenos fossem mais chegados à terra e, se achassem pouco seguro para as naus, amainassem.

E navegando nós pela costa, a cerca de dez léguas donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma entrada muito larga. E meteram-se dentro e amainaram, e as suas naus arribaram sobre eles. E um pouco antes do sol-posto amainaram, a cerca de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

E estando Afonso Lopes, nosso piloto, num daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife para sondar o porto por dentro, tomando numa almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco e seis ou sete setas, e na praia andavam muitos com os seus arcos e setas, mas não os usaram. Trouxe-os logo, já de noite, à nau do Capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é parda, meio avermelhada, e de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, e não se preocupam com cobrir nem mostrar as suas vergonhas, e têm tanta inocência nisso como em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados, e metidos neles ossos brancos e verdadeiros, do comprimento de uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o osso que lhes fica entre os beiços e os dentes é feito como roque de xadrez, e de tal maneira o trazem ali encaixado que não os incomoda nem lhes perturba a fala, nem comer nem beber.

Os seus cabelos são tão corredios, e andavam tosquiados de tosquia alta, mais do que de sobrepente, de boa grandura, e rapados por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte de trás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, muito basta e muito cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas, a qual andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como a cera – mas que, na realidade, não o era-, de maneira que a cabeleira ficava muito redonda e muito basta e muito igual, não sendo necessário mais lavagem para a levantar.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado numa cadeira, com uma alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar de ouro muito grande ao pescoço. Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Correia e todos nós que com ele vamos na nau sentados no chão ao longo da alcatifa. Acenderam tochas e entraram, e não fizeram nenhum gesto de cortesia nem se dirigiram ao Capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs o olho no colar do Capitão e começou a acenar com a mão para  terra, e depois para o colar, como que dizendo que havia em terra ouro.

E também vi um castiçal de prata, e do mesmo modo acenava para  terra e de novo para o castiçal, como se houvesse também prata.

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz; tomaram-no logo na mão e acenaram para terra, como se dissessem que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela e não lhe queriam pôr a mão; mas depois, espantados, agarraram-na.

Deram-lhes ali de comer-pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo, e se o provavam, lançavam-no logo fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça, mas mal o puseram à boca, não gostaram nada dele nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água numa albarrada, cada um tomou dela o seu bocado, mas não beberam. Somente lavaram a boca e lançaram-na fora.

Viu um deles umas contas de rosário brancas e acenou que lhas dessem e folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e embrulhou-as no braço, e acenava para a terra, e novamente para as contas e  para o colar do Capitão, como se dissesse que dariam ouro por aquilo.

Isto nós tomávamos assim por o desejarmos, mas se ele queria dizer que levaria as contas e o colar, isto nós já não queríamos entender, porque lhos não havíamos de dar. Depois tornou as contas a quem lhas deu. E então estiraram-se assim de costas na alcatifa a dormir, sem cobrirem as suas vergonhas, as quais não eram fanadas, e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão mandou pôr-lhes coxins debaixo das cabeças, e o da cabeleira procurava não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima, e eles consentiram e ficaram e dormiram.

Carta a El-Rei D Manuel sobre o Achamento do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, Porto Editora

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