
foto: Leonardo Ramos – 10º ano (2021-22)
poema: “Poema do amor fóssil”, de António Gedeão
Poema do amor fóssil Quem de nós falará aos homens que hão de vir quando o grande clarão encher de luz e pasmo as nossas bocas? E como? Que língua entenderão eles? Que símbolos, que sinais, que apagados murmúrios, lhes falarão de nós, desta fluida e versátil multidão, destes seres que aparentam rosto humano e como tal comovem, mas que olhados do alto são lepra do planeta. Que significará sofrer, amar, lutar, quando as nossas misérias e tormentos não forem mais do que pegadas fósseis? Que palavras há-de o poeta reservar para o coração de plástico dos homens que hão-de vir? Que santo e senha entenderão Que de nós restará neles? Que parecenças terão com estes hominídeos que amaram a Natureza porque lhes era hostil e suportaram o próximo porque não eram livres? Que verbo deverá ficar gravado na pedra que o vento não corroa, que lhes fale dos humilhados e dos ofendidos, dos sonhadores e dos impotentes, dos ansiosos, dos bêbados e dos ladrões, desta ridícula, miserável e corrupta humanidade que instala os arraiais da morte alegremente num campo que foi verde e que não volta a sê-lo? Amor? Como será amor em língua cibernética? António Gedeão, Poemas Póstumos
António Gedeão (1906-1997