leitura: Guilherme Carvalho – 11ºano (2021-22)
texto: “Sonhos brancos de pássaros”, de Jorge Listopad
Sonhos brancos de pássaros
O carro chegou era já muito noite, parou, suspirou e adormeceu. Sem reparar, dormiu debaixo de uma árvore. Quando acordou – o céu ainda húmido mas já azulado – a árvore disse-lhe:
– Então, os sonhos foram bons, camarada?
O carro, que era muito senhor do seu capote, não gostou daquela familiaridade mas, pelo sim e pelo não, respondeu:
– Obrigado.
– Obrigado o quê? – atacou a árvore. – Não perguntei por cortesia, nem por perguntar, perguntei para saber.
O carro compreendeu que a vizinha daquele acaso nocturno era de madeira dura de roer, e procurou uma forma discreta de satisfazer a árvore mantendo embora curtas as relações. Se quisesse ter amigos, arranjava-os nas garagens ministeriais, nos lugares reservados, nos hotéis de primeira, nas pousadas; então, com prudente diplomacia e num tom jovial disse, limpando um pouco a voz: – Pois, sonhos, por assim dizer, não tive. Nós, os carros de primeira, minha senhora, não temos sonhos. Dormimos profundamente. Reconheço todavia que dormi muito bem, certamente devido a estar perto de si.
A árvore, que não gostou nada do «todavia», palavra cara e fingida, nem do «devido», nem de nada, riu-se e deixou correr. Passava das 10 horas, o carro arrancou com o seu dono. Quando chegaram ao Ministério Um, os outros carros, que eram iguais a ele, riram-se muito e disseram: – Ena, o colega onde é que dormiu esta noite? – ou – Ó meu caro, você agora anda metido com o sindicato dos pássaros?
Efectivamente, o carro esplêndido, metalizado, sempre novo ou como novo, estava todo ele coberto com pequenas lembranças dos pássaros que tinham dormido naquela árvore e provavelmente tinham tido excelentes sonhos.
Jorge Listopad, Meio Conto, Edições Afrontamento
Jorge Listopad (1921-2017)